Encurtamento da infância, pressão em excesso e ritmo de vida acelerado podem estar por trás dos casos
Nem sempre criança é sinônimo de energia, alegria e felicidade. Elas também são fisgadas pela depressão, doença que atinge 15% da população adulta do Brasil. Entre os menores, o índice varia de 1% a 2%, e entre os adolescentes sobe para 5%, em casos que podem até acabar em morte. O problema tem preocupado a comunidade médica. Só em Porto Alegre, dois ambulatórios de psiquiatria devem ser inaugurados em breve para abordar o tema, um no Hospital de Clínicas e outro no Mãe de Deus.
Os sintomas são envoltos em sutilezas, já que os pequenos não têm a mesma capacidade de expressão dos adultos. Há meses, um menino de cinco anos deu entrada na emergência do Mãe de Deus por ter engolido uma moeda. Os médicos estranharam por se tratar de uma criança fora da fase em que leva tudo à boca. Semanas mais tarde, a mesma criança foi levada ao serviço, novamente engasgada. Um psiquiatra da instituição foi chamado para conversar e averiguar. A sós com o médico, a criança contou que estava tentando se matar.
– São crianças querendo morrer porque ninguém as ouve, não recebem atenção. Estamos vivendo um período de pleno emprego, ficando fora de casa o dia inteiro e não temos tempo para elas – exclama o psiquiatra Ricardo Nogueira, gestor de Saúde Mental da instituição.
Risco de se “acostumar” com a depressão
Nogueira e Gibsi Rocha, chefe do Ambulatório de Psiquiatria do Hospital São Lucas da PUCRS e especialista em infância e adolescência, notam que as queixas de depressão na infância estão mais frequentes e que os motivos estão relacionados a uma pressão pelo melhor desempenho das crianças, famílias desestruturadas e exposição à violência e ao sexo na televisão.
– Tudo isso as deixa mais ansiosas e mais vulneráveis à depressão, pois elas não têm estrutura para lidar com coisas que ainda não estão prontas para entender – aponta Gibsi.
Ela associa os fatores listados acima ao encurtamento da infância. Os sinais dessas mudanças estão nas unhas pintadas desde sempre, no rebolar das danças sensualizadas e na vontade de fazer parte das redes sociais com fotos exibicionistas.
Miguel Angelo Boarati, psiquiatra da infância e adolescência e coordenador do Ambulatório de Transtornos Afetivos e do Hospital-Dia Infantil do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, lembra que os critérios de diagnóstico são os mesmos utilizados em adultos, mas a apresentação varia conforme a fase do desenvolvimento no qual a criança está. Médicos recomendam que os pais fiquem atentos a mudanças bruscas na forma como os filhos se relacionam com amigos e familiares, se adotam um discurso diferente do habitual ou se começam a ir mal na escola de uma hora para a outra.
– Muitas vezes, a criança não sente que está deprimida, apenas que algo está diferente, mas não tem compreensão suficiente para se perceber doente. E, dependendo do ambiente no qual é criada ou pelo tempo em que está deprimida, pode se “acostumar” com os sintomas e acreditar que esse é o jeito dela ser – diz Miguel Boarati.
Reflexão levada aos palcos
Quase como um desabafo e uma crítica à necessidade de ser feliz o tempo todo, Martina Schreiner escreveu o texto da peça infantil Nina, o Monstro e o Coração Perdido. Ela quis propor esta reflexão às crianças ao contar a história de uma menina que não queria ter coração para não ter dor.
– Diz respeito a esta pressão que todo mundo vive hoje que não nos permite falar dos nossos problemas e isso atinge as crianças, que também têm dificuldade em lidar com a tristeza – explica a autora.
As histórias de meninos e meninas da vida real são tão cheias de sutilezas quanto a de Nina, personagem da ficção. Na maioria, os sintomas depressivos mais típicos estão encobertos por manifestações de irritabilidade ou raiva, situa Adriana Zanonato, psicóloga terapeuta de infância e adolescência.
Rogéria Recondo, vice-presidente da Associação Brasileira de Neurologia, Psiquiatria Infantil e Profissões Afins (Abenepi) do Rio Grande do Sul, atua na área há quase 30 anos. Ela afirma que foi apenas a partir da década de 70 que os pesquisadores começaram a apontar a depressão na infância. Rogéria nota que, nos últimos tempos, profissionais como pediatras, professores e pedagogos estão mais atentos à depressão e que é comum os pais chegarem ao consultório também por meio de um encaminhamento da escola ou dos médicos de rotina.
Fatores genéticos e ambientais podem contribuir para o desenvolvimento da depressão precoce, além de propiciar casos mais graves e refratários a tratamentos. O neurogeneticista David Schlesinger afirma que existe componente genético para isso, mas não é único, nem o maior.
– Se a doença acomete mais cedo é mais grave ou tem fatores causais mais fortes, elas têm chance maior de serem deprimidas ao longo da vida, o que não quer dizer, é claro, que toda depressão na infância é severa – observa Schlesinger.
Hospital de Clínicas de Porto Alegre terá ambulatório
A chance de que os filhos sejam depressivos é quatro vezes maior nas famílias em que pai e mãe apresentam a doença. Percebendo na situação uma questão de saúde pública, o ambulatório da depressão do Hospital de Clínicas da Capital deve começar a funcionar até o final do ano, sob a coordenação do psiquiatra Christian Kieling. O foco, inicialmente, será voltado para quem tiver entre 12 e 18 anos. Os dados dos pacientes serão lançadas em um banco, que deve gerar estatísticas para melhor compreender o problema.