A polêmica das palmadas

Por Dr. Miguel Angelo Boarati*, psiquiatra da infância e adolescência

A polêmica que trata sobre a Lei da Palmada que foi aprovada pelo Senado Federal há pouco mais de dois anos voltou à tona, em especial nas redes sociais a partir da publicação do livro “Tapa na Bunda: como impor limites e estabelecer relacionamento sadio com as crianças em tempos politicamente corretos” da terapeuta infantil Denise Dias, pela Editora Matrix. Ela afirma que “a palmada é uma das alternativas, é o que resolve”.

A grande questão que me pergunto, como psiquiatra da infância e adolescência, é baseado em que teorias psicológicas do desenvolvimento infantil ela se baseou? E considerando que se trata de um trabalho publicado por uma profissional da área, o assunto ganha peso de verdade cientifica e acaba por reforçar uma crescente ideia de que a falta de controle das crianças se deva à falta dos castigos físicos que eram impostos nos passado como forma de educar.

Inicialmente, não existe qualquer teoria, da psicanálise a teoria analítico-comportamental, que corrobore essa colocação, tão baseada em “achismos” e “pseudociência”. É uma visão simplista e distorcida de como educar os filhos, além de bastante perigosa e absurda.

A verdade é que educar crianças e adolescentes é uma tarefa árdua, que exige dedicação, tempo e competência. Muitas vezes é necessário se recorrer a profissionais da área da psicologia e psiquiatria para receber as orientações adequadas, para que haja um alinhamento das condutas entre pais e cuidadores na condução da educação dos filhos.

O que acontece hoje é que sem novos parâmetros de como educar, os pais têm deixado os filhos soltos, sem direcionamento ou correção dos comportamentos inadequados, seja no contexto familiar ou no ambiente mais amplo como escola e sociedade. Os pais estão perdidos, sem tempo disponível e sem paciência para educar esses filhos. Agem muitas vezes de formas antagônicas na educação dessas crianças. Existe um processo de “terceirização” da educação para os professores, babás e terapeutas. Os pais se descomprometem e justificam que não conseguem agir, como se a criança já tivesse nascido grande e agressiva.

Existem casos de transtornos mentais e emocionais que produzem sérios problemas de comportamento e que exigem tratamento especializado, porém não são a maioria dos casos dos problemas comportamentais observados nas crianças de maneira geral. A maioria das vezes é realmente falta de limite e educação, mas esse processo não poderá de forma alguma ser colocado sob a forma da agressão física, mesmo que sejam leves palmadas.

Não existe limites para a agressão física. Se uma criança comete uma desobediência e não atende ao que os pais determinam você dá uma palmada. Se uma não resolve, você dá duas, em seguida três, dez, chineladas, até se pratica o espancamento. Crianças que sofrem violência física são mais propensas a se tornarem adultos agressivos e violentos, tanto com os filhos quanto com os parceiros.

Se o argumento verbal não está resolvendo certamente a forma que está sendo aplicado é que está equivocada. Nesse sentido, a terapeuta comportamental Andrea Callonere publicou nesse ano sua tese de doutorado pelo departamento de Psicologia Experimental da Universidade de São Paulo intitulada “Aplicação de um Programa de Orientação Comportamental de Pais em Hospital Universitário”. Seu trabalho se baseia na aplicação da teoria comportamental de Skinner com pais de crianças e adolescentes com problemas sérios de manejo e comportamento, mas que pode ser aplicado em quaisquer situações. Ela mostra que os pais precisam se apropriar de seu papel de cuidadores, modelando o comportamento dos filhos a partir das mudanças que precisam ocorrer nos próprios pais. Ou seja, os pais são agentes ativos no processo de educar e precisam realizar mudanças neles mesmos, a partir da reflexão e análise dos próprios comportamentos que de alguma forma estão reforçando os comportamentos inadequados dos filhos.

A criança não nasce pronta, precisa amadurecer neurologicamente e para isso precisa de regras, rotinas e modelos adequados e consistentes. Muitas vezes é nesse momento que as coisas se perdem, pois isso é extremamente trabalhoso, exigindo dos pais recursos e autoridade que muitas vezes eles próprios não desenvolveram.

Costumo dizer que se a punição física fosse minimamente eficiente, as instituições para menores infratores seriam a solução dos problemas, pois essas crianças e adolescentes sempre apanharam como forma de educação, seja dos pais, avós ou monitores e isso posso afirmar com a experiência de dez anos atendendo menores infratores internados Fundação CASA que apresentam problemas psiquiátricos e comportamentais que não funciona. A quase totalidade dessas crianças e adolescentes sempre sofreu abusos físicos.

É necessário que se desenvolva uma discussão ampla e aprofundada sobre o tema, buscando soluções eficientes e com base nas teorias psicológicas do desenvolvimento para que possa se equacionar o processo de educar e colocar limites. Entretanto, isso jamais e em tempo algum passa por qualquer tipo de violência, seja física ou psicológica, pois ao contrário do que muitos adultos que são favoráveis às técnicas de punição física do passado, justificando que antes as crianças eram educadas porque temiam seus pais, o estrago psicológico ocorre e tem impactos profundos ao longo de toda a vida, além de contribuir para a perpetuação do modelo de violência.

*Miguel Angelo Boarati é médico psiquiatra da infância e adolescência formado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Médico assistente e supervisor de médicos residentes em psiquiatria da infância e adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP-SP. Autor dos livros “Transtorno Bipolar na Infância e Adolescência: Aspectos Clínicos e Comorbidades” e “Transtornos Afetivos na Infância e Adolescência” ambos pela Editora Artmed (Grupo A), “Criança, Família e Escola – Promovendo o Desempenho e a Saúde Emocional do Seu Filho (Guia prático para pais e professores) pela Pulso Editorial e “Psiquiatria da Infância e Adolescência: Cuidado Multidisciplinar” pela Editora Manole, além da participação em diversos capítulos de livros e artigos científicos. Já participou como especialista convidado do Papo de Mãe em diversas oportunidades e é colaborador do Portal Papo de Mãe. 

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