Novas crianças, novos modelos de educar os filhos

Miguel Angelo Boarati
Psiquiatra da Infância e Adolescência

A virada do milênio não foi apenas uma mudança no calendário. Configurou-se em um processo de transformação muito intenso, onde a tecnologia assumiu um protagonismo fundamental na vida de todo o mundo. Passamos a nos comunicar cada vez mais rápido e com um maior número de pessoas. Se antigamente somente quem era detentor dos meios de comunicação, como o rádio, jornal e televisão, conseguia atingir diferentes grupos de pessoas em tempo recorde, hoje com apenas um smathphone e acesso à internet podemos transmitir mensagens, fotos e vídeos a todo o planeta em questão de segundos.

Hoje as informações e notícias que são transmitidas de maneira rápida e fugaz e mesmo aquelas que possa carregaram conteúdos que modificariam o ciclo das coisas se tornam velhas, desatualizadas e desinteressantes em questão de dias, caindo no esquecimento rapidamente.

Nós que somos hoje adultos e que fomos crianças nos anos de 1960, 1970 ou 1980 nos lembramos de como as informações e o conhecimento chegava até nós, seja pelos meios de comunicação, pela escola ou pelos pais, era transmitido muito devagar, permitindo que tivéssemos tempo para assimilar com calma tudo que era transmitido

Um trabalho de escola que envolvia uma pesquisa exigia do aluno o movimento de ir até a biblioteca municipal, ler o material pesquisado e escrever (muitas vezes a mão, pois nem todo mundo dispunha de máquina de datilografia) o conteúdo da matéria. Esse trabalho artesanal permitia que a criança entrasse em contato com algo inédito dentro de um livro físico que tinha páginas, textura, cor e cheiro (principalmente quando era um livro bastante usando). Era uma experiência sensorial única e exclusiva que o aluno poderia ter. Hoje basta um clique e todo o conteúdo necessário para um trabalho escolar está diante dos olhos da criança e é só fazer um Ctrl + C e um Ctrl + V e todo o material será copiado e anexado ao texto em word que será enviado pelo professor na plataforma da escola. Não há muito contato da criança com a informação e consequentemente não há uma experiência pessoal com ela.

Esse é um caminho sem volta. O futuro chegou e precisamos viver com ele da melhor forma possível.

As crianças que nasceram na virada do milênio terão menos experiências presenciais e mais contato com os meios digitais para estudarem, divertirem-se e se relacionarem. Isso não é melhor e nem pior, só é diferente. E é essa diferença que marca a geração de crianças e adolescentes que temos hoje, principalmente após a pandemia do COVID-19 que impôs durante quase três anos o isolamento social, perda de experiências e ritos de passagem (como a viagem de formatura) e a convivência diária com as telas. Lembrando que três na vida de uma criança ou adolescente é um período muito significativo do desenvolvimento e que marca a sua vida profundamente.

Além disso, as crianças e adolescentes do novo milênio têm maior acesso a conteúdo e informações que antes só nos era apresentado quando éramos mais velhos. Eles aprendem línguas estrangeiras ao entrarem na escola, a matemática possui outras formas de serem ensinadas e eles discutem religião, sexualidade ou direitos humanos, não aceitando passivamente injustiças ou regras que lhes pareçam inadequadas ou incoerentes.

Muitos pais quando chegam ao consultório se mostram perdidos na forma de conduzir situações conflituosas que não ocorriam quando eles eram crianças e adolescentes. Professores também se veem nessa situação quando seus alunos apresentam comportamentos e questionamentos que muitos deles nunca se haviam apresentado quando eram alunos.

As crianças e adolescentes de hoje são iguais e também totalmente diferentes das crianças e adolescentes do passado. São iguais porque, semelhantemente ao passado, estão se desenvolvendo e aprendendo, são imaturos e inconsequentes. Necessitam ser orientados, guiados e controlados até que consigam fazer isso por conta própria. Eles não são e nunca foram adultos antes e por mais que tragam falas que possam parecer de alguém que já viveu muito, eles não viveram, apenas leram ou assistiram um vídeo que traziam conteúdos novos e interessantes e reproduzem sem uma verdadeira análise crítica. Mas eles são diferentes das crianças e adolescentes do passado justamente porque eles foram estimulados precocemente com as informações trazidas rapidamente pela tecnologia. Com isso eles puderam acessar conteúdos que modelaram sua forma pensar, analisar e agir.

O ponto que leva ao choque de gerações é que muitos pais tentam impor uma regra que não está mais valendo, simplesmente porque o mundo mudou. Entretanto, existem questões básicas que envolvem o aprendizado das regras sociais, da autorregulação emocional e comportamental que são papéis fundamentais que os pais precisam ensinar aos seus filhos que está sendo cada vez mais terceirizado para professores e terapeutas das crianças e adolescentes. É muito frequente que pais cheguem ao consultório reclamando de um comportamento inadequado do filho querendo o médico ou o terapeuta corrija o comportamento do seu filho com um remédio ou uma bronca.

O mundo mudou e as crianças e adolescentes de hoje são afetadas por essas mudanças. Os pais também precisam mudar, buscando novas estratégias de manejos, conhecer a realidade do filho e principalmente acompanhar o processo de crescimento dos seus filhos. Para isso é necessário buscar informações relevantes de modelos parentais que possam ser mais adequados e que possibilitem que os filhos aprendam e criem um vínculo de confiança na capacidade dos pais de assisti-los, orientá-los e controlá-los enquanto eles não conseguem fazer isso por si.

O modelo de parentalidade vigente até meados dos anos 1990 era a parentalidade autoritária que primava pela imposição da autoridade dos pais e muitas vezes com o uso da punição física. Esse era o modelo que se considerava adequado e que diversos estudos mostraram ter efeitos emocionais bastante negativos no desenvolvimento emocional e cognitivo das crianças e adolescentes. Hoje fomos para o extremo oposto, o da parentalidade permissiva onde a expressão das necessidade e desejos das crianças é tida como prioridade e pouco ou nada se fala das obrigações a serem realizadas. Também observamos a parentalidade negligente, onde ocorre a terceirização total do papel dos pais para outros adultos ou simplesmente as crianças crescem soltas e sem regras e limites. Todos esses três modelos de parentalidade colocam os pais distantes do papel principal de se criar um filho que é o de cuidar, atender às necessidade (e não os desejos), orientar e direcionar.

Dessa forma, a parentalidade mais adequada a ser desenvolvida na educação dos filhos, principalmente nos tempos atuais de tantas mudanças rápidas e influências do mundo digital aos quais muitas vezes os pais não têm acesso, é a parentalidade democrática. Nela os pais definem comportamentos desejados a serem atingidos, estabelecem regras e limites claros, precisos e coerentes, além de dar consequências para os comportamentos inadequados. A punição quando acontece é rara e adequada (por ex., retirar o celular quando a criança não faz os deveres escolares). Em nenhum momento a punição física deverá ser utilizada, pois além de se tratar de uma violência, ela é a porta de entrada para uma série de problemas emocionais e comportamentais futuros.

Para conseguir lidar com tantas mudanças e situações desafiadoras é fundamental que os pais busquem ajuda. Diferentemente do que ocorria no passado, a compreensão sobre melhores formas de se criar e educar uma criança se desenvolveram. Práticas e intervenções baseadas em estudos científicos permitem com que psicólogos e terapeutas possam orientar os pais sobre outras formas de agirem com mais assertividade para que se obtenha resultados melhores na lida com os inúmeros desafios em se criar os filhos, principalmente na era digital, onde o conhecimento e a informação correm em velocidade mais acelerada.

A terapia de orientação parental é hoje uma prática reconhecida e que pode auxiliar muitos pais, propondo manejos e forma de lidar com as crises da infância e adolescência no que diz respeito a problemas a serem enfrentados. Desde dificuldades de relacionamento com outras crianças na escola, problemas com comportamento opositor e o risco do uso de drogas, além de outras dificuldades que serão atravessados enquanto as crianças e adolescentes crescem poderão ser trabalhadas durante a terapia parental.

No entanto, é necessário que os pais se abram para rever seus conceitos e crenças, mudando atitudes que se mostram inadequadas ou desatualizadas para conseguirem atingir resultados mais satisfatórios na educação e cuidados de seus filhos.

Os pais são “comandantes” desse barco que é a família e precisam agir de maneira alinhada e consistente. Mesmo quando os pais não concordam em todos os pontos simplesmente porque são pessoas diferentes e possuem maneiras distintas de resolverem problemas ou lidar com situações, é importante que haja um denominador comum, para que os filhos se sintam seguros e possam assimilar o direcionamento que os pais determinarem. Não é um processo fácil, exige dos pais flexibilidade e abertura para mudança. Não é fácil, mas é um caminho possível.

Criar um filho é um trabalho fascinante, porém difícil e porque não dizer desgastante. Exige dos pais experiência, equilíbrio e principalmente amor. Amor para dizer não quando for necessário e manter esse não mesmo que doa. Amor para permitir que o filho sofra com as consequências de suas escolhas, mesmo que pareça ser mais fácil para os pais pegar a dor para si. É importante que enquanto crescem os filhos aprendam a lidar com a perdas, com as dores e com as negativas que a vida dá a todo o momento. Do contrário criarão uma legião de adultos frágeis, insatisfeitos e com dificuldade de lidar com a realidade do mundo.

Referências Bibliográficas

  1. Desenvolvimento Humano – Diane E. Papalia, Ruth Duskin Feldman com Gabriela Martoreli; tradução: Carla Filomena Marques Pinto Vercesi (et al)- Editora Artmed (Mc Graw Hill) – 12ª edição – Porto Alegre, 2013
  2. Callonere, Andrea. (2016). Tese de Doutorado. Callonere de Freitas. A Aplicação de um Programa Comportamental de Orientação de Pais em Hospital Universitário. Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; 2016
  3. Callonere A – Orientação parental na abordagem familiar do transtorno de humor com início na infância e na adolescência em Transtornos do Humor na Infância e Adolescência – editores Lee Fu-I & Miguel Angelo Boarati, 2023 (em processo de publicação)

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